Retrospectiva. do termo latino: retrospectare, “olhar para trás”.
É 1º de dezembro: o último mês do ano. E, relembrando Carlos Drummond de Andrade, um dos primeiros poetas do qual eu tive acesso:
Tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo.
E, com esse sentimento do mundo em minhas mãos, eu voluntária e teimosamente vou iniciar o processo de fechamento do ciclo — mental, do ano de 2020, o qual foi divisor de águas no contexto social, político, econômico e essencialmente sanitário para a humanidade.
Desde que eu me entendo por gente e, consequentemente desde que aprendi a ler e escrever, eu reflito do porquê é importante escrever. A escrita é importante tanto para o campo de significação pessoal, quanto para a construção da memória coletiva dos povos, sejam eles grandes ou de pequena extensão. Tenho certeza de que a queima dos documentos sobre a escravidão provocados por Ruy Barbosa — sem medo de cometer anacronismos, é, para além do epistemicídio, o apagamento da memória dos meus ancestrais. E, temos atualmente, a história única repleta da diversidade branca.
Chimamanda Ngozi Adichie há alguns anos atrás elucidaria num palestra sobre o perigo da história única; aquela história esteriotipada em que conhecemos apenas a versão deturpada de uma realidade, o que nos impeder de pensar que determinado povo não tem potência.
É por isso que eu escrevo. E, de certa forma, todo mundo escreve, ainda que para si mesmos, ainda que não de forma escrita. Gosto de aproveitar a minha vida para elaborar o presente de uma forma rica, tanto quanto desenhar repletos de prazer e aprendizagem.
Janeiro
Após o ano conturbado de 2019 — meu ano de formatura, 2020 era o ano desejado. Em janeiro eu estava com uma casa nova, novo emprego, novos esportes, novos acessórios tecnológicos, novos sonhos e novas expectativas. É clichê o preparo de tantas novidades para um ano. Pois não era. Eu havia acabado de me graduar em Direito pela Pontifícia Universidade Católica. 5 anos. 100 matérias — no mínimo. 10 semestres. Estágio em pelo menos 4 lugares, em 5 áreas diferentes. Estudei à noite e de manhã. Eu vivi o processo de transformação da vida adulta. Mudanças de casa, de mente, de corpo, de relacionamentos, inclusive de amizades. Nenhuma mente que se expande volta ao seu tamanho original. Cinco anos num curso conservador na cidade de São Paulo me mudaria para sempre. Eu não poderia estar mais aliviada pelo processo ter sido finalizado.
No entanto, e agora? Eu jamais havia sonhado em ser advogada, bem como durante toda a faculdade eu havia chegado a conclusão de que o direito é poder. E, na maior parte do tempo, uma grande farsa. Para além de figuras como Luiz Gama e Joaquim Barbosa, eu certamente não me via em quaisquer juristas. Professores como Airton Leite, Eduardo Dias e Lucineia Rosa dos Santos — os únicos professores negros, eram os meus vislumbres de possibilidades dentro da academia ou do meio jurídico, mas, ainda sim, tão distantes.
Jamais tive dificuldades com o conteúdo da faculdade de Direito. A problemática é a compreensão da história, da sociologia, das dinâmicas de poder na sociedade brasileira. Um país intrinsecamente marcado pelo imperialismo e colonialismo, com a fundamentação de suas estruturas no estupro de mulheres negras escravizadas e mulheres indígenas. Ainda, que as estruturas seculares foram literalmente construídas com cimento e sangue dos povos originários.
Dos 17 aos 22 anos é bastante coisa para assimilar. Então, janeiro, após eu me permitir ter um ano novo descontraído com os meus colegas de faculdade, eu precisava respirar.
Eu respirei tanto que, até embaixo d’água eu era capaz de segurar a minha respiração e ser feliz sob outra perspectiva.
Fevereiro
Da colação de grau a um choro primitivo de mal estar, eu mal sabia como me sentir diante de tal feito. Formada! A primeira da minha família na idade que eu tenho? Sim. Tenho alguns tios que se formaram já maduros.
É difícil escrever tanto quanto pensar nisso. Minha avó materna morrera analfabeta aos 70 anos, câncer. Minha avó paterna com 90 e poucos é uma mineira que não tem quaisquer autonomias em São Paulo. Minha falecida avó trabalhava como empregada na casa de pessoas que só depois de adulta eu vim a entender o significado dessa posição social. Meus primeiros livros vieram do lixo dos ricos.
Eu odeio que essa história me dói mais do que me deixa orgulhosa de minha força. Não deveria ser assim e pronto. E, eu digo não para quaisquer pessoas que de alguma forma tente romantizar essa minha vivência. É meu, ponto. Só eu posso falar, e, licença, em primeira pessoa. Meu luto é dívida histórica, quem conhece meu sorriso sabe o quanto ele custou para os meus ancestrais.

Março
Quase morri afogada no dia 14 de março de 2020, o qual também foi o dia da festa de formatura — que infelizmente eu fui. Minha experiência de quase morte aliada com a visão de que as pessoas iguais a mim estavam no suporte da festa me deu enjoô.
Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa:
“Navegar é preciso; viver não é preciso.”(*)
– Fernando Pessoa, Navegar é preciso.
O moço branco simpático do uber afagou o meu choro mais do que quaisquer amigos pessoais poderiam afagar.
Eu fui uma criança tímida, sensível e chorona. Mas, logo eu entendi que enquanto mulher (e negra) se eu carregasse essas características, seria o meu fim. Aprendi cedo a engolir o choro. Aos 10 eu já conseguia provocar o choro nos outros com o meu estilo general implacável.
Ocorre que fendas no espírito não podem ser fechadas com o sentimento meritocrático. O mundo é vasto tanto quanto as possibilidades da compreensão do mistério da vida. A primeira experiência de quase morte desse ano deixou claro a ausência de controle que temos sobre aquilo que pode ferir.
Não me demoro na frustração de me apaixonar por alguém que não é capaz de me respeitar; nem nas minhas atitudes carnavalescas para tentar colocar um band-aid na ferida emocional.
Mas, faz sentido demorar no ponto que o Decreto nº 64.865, de 18 de março de 2020 impôs o Estado de Emergência na Cidade de são Paulo, tendo a cidade parado, no dia do meu aniversário de 23 anos.
Narciso ficou menos triste que a celebração do meu ego não veio esse ano, do que a indefinição da vida social como um todo. Como todos nós deveríamos nos comportar sob a égide de uma Pandemia? (Pandemia provocada pelo novo coronavírus — COVID19, a qual até o momento da publicação deste texto ceifou pelo menos 1.465.492 vidas [contabilizadas] por todo o mundo.)
O 8 de março fora interessante. Discuti publicamente numa roda com muitos amigos sobre o livro: “Quem tem medo do feminismo negro? da Djamila Ribeiro”. O carnaval também fora interessante, ainda que ambos os eventos guardavam sentimentos estranhos de convívio social ameaçado.

No dia 9 de março, eu resgatei no meu rolo da câmera de que eu havia comprado todos os livros publicados da Conceição Evaristo e ela insistiu para autografar todos.
A Conceição não é o primeiro ícone da literatura negra a qual me encontro. Eu tenho registros de 2015 com a Sueli Carneiro, Djamila Ribeiro e tantos outros. Mas, em 2015 (ano que conheci Silvio Almeida no Congresso de Advogados Negros da OAB) eu tinha 17 anos. Para os mais velhos, 23 anos ainda é pouco. Msa, no meu espectro pessoal, eu me sinto tão madura e confortável com algumas questões! Bem, o que posso fazer é continuar vivendo de forma esplêndida e sentindo de forma sublime até alcançar a idade que meus críticos imaginam que eu terei mais propriedade para entender das coisas, e eles dirão que ainda sou muito jovem, porque bem, nunca neguei que eu nasci em 1997, risos…

Abril
Não me lembro muito bem de abril. Eu sei que eu estava dormindo no sofá da casa dos meus pais. Tentando entender como seria a rotina de trabalho remoto com um chefe peculiar — no mínimo.
Eu li bons livros e andei bastante de bicicleta. Voltar para o bairro dos meus pais mais velha fez com que eu percebesse coisas indescritíveis sob a minha própria construção enquanto pessoa.
“I’m black. I’m solitary. I’ve always been an outsider.” — Octávia Butler
Jamais romantizei a periferia onde eu cresci, eu sempre fui uma estrangeira. Voltar para o lugar onde eu cresci e sofri as violações à minha pessoa foi o começo da aceitação do lugar que eu ocupo na minha família, no meu bairro, nas relações que eu construí e construo… inclusive, da minha própria jornada.
Nesse mês, eu escrevi um livro para a minha avó Isabel Valentim Ernesto, entitulado: Todo mundo escreve.
Maio
Não lembrava de maio até outra vez revisitar o meu rolo da câmera. Eu desisti do apartamento que eu morava para voltar a morar definitivamente com os meus pais. Meu pai fez a estante abaixo a qual inclusive não foi capaz de comportar todos os meus livros.

Junho
O convívio com os meus familiares passou a ser insustentável.
Julho
Julho foi um mês tão difícil de explicar como março. É aqui que eu me deparo com o sentimento de será que vale a pena continuar escrevendo essa retrospectiva. Serei breve, para não desistir do ofício.
- Fui aprovada no mestrado em Direito, no Departamento de Filosofia do Direito, no Núcleo de Pesquisa do direito como Axiologia, Epistemologia e Ontologia;
 - Meu chefe virou um político brasileiro e fiquei à deriva;
 - Fiz vakinha para o mestrado, uma vez que o mesmo custa mais do que os meus rendimentos;
 - Arrecadei 12k para viabilizar o início do mestrado e concorrer a bolsa de estudos;
 
Pra falar do que sinto cantei
Cantei, me expus e até me emocionei
Pra falar do que sinto cantei
Cantei, me expus e até me emocionei
5. Mudei de casa, de novo.
6. Um relacionamento despontou, aquele de março.
Agosto
Morando com a minha melhor amiga e namorando, ainda que muito confusa sobre o destino do meu trabalho e da vida acadêmica… eu me fazia feliz da forma que eu podia.
Amando intensamente e sendo o mais sincera possível com aquilo que eu sentia, eu arrisquei, joguei-me de cabeça nas minhas construções e o fundo do poço, por sorte, não foi assim tão fundo.
Setembro
Discussões sobre viabilização do mestrado e tentativas de mudanças de trabalho me levaram a exaustão. É bastante fácil que relacionamentos tóxicos — de diversas naturezas se façam presentes. A maioria das pessoas brancas me cansam, porque na tentativa de tentar não serem “racistas”, na verdade é tudo o que elas conseguem ser.
Eu estava cansada o suficiente para não perceber as manobras de pessoas com ares de estrelismos e com um ego assustadoramente genocida. Acontece… Se o Brasil foi um dos últimos a abolir a escravidão, esses acontecimentos não deveriam ser tão impressionantes.
Tranquei o mestrado.
Outubro
Respirei por 12 horas fora da novela acadêmica. Até que um padrinho — investidor me ofertou a possibilidade de viabilizar financeiramente o meu mestrado.
Troquei de orientador. E, corri para finalmente começar o mestrado sem a ameaça de dívidas ou dele não ser mais possível.
Terminei meu relacionamento tóxico, e talvez eu volte nesse texto para adicionar coisas sobre ele. Talvez não. Mas, basicamente eu consegui entender o porquê de eu sempre terminar quaisquer relacionamentos que eu começo…
You’ve got to learn to leave the table when love’s no longer being served
(Você tem de aprender a sair da mesa quando o amor já não está sendo servido)
– Nina Simone, You’ve Got To Learn
Novembro
Ah, novembro! Um mês repleto de limpezas. Um mês repleto de plantas, borboletas e uma ótima alimentação. Preparos para a esperança de um 2021 pelo menos mais centrado em mim mesma e nos meus próprios processos. Afinal, tudo que eu posso — e devo fazer, é olha para dentro.
É bom saber que eu não preciso abrir mão de mim para gostar de alguém e sentir frio na barriga.
Além disso, tenho consolidado as minhas aulas particulares de alfabetização e concretizado a vocação de ser professora.
Experiências com o oculto me tiraram o ceticismo o suficiente para confiar mais na minha intuição… eu agradeço à minha espiritualidade pelas potências e decadências.
Dezembro
E, os primeiros minutos de dezembro já demonstram o esperado… a melancolia do fim. E, foi por isso que eu comecei a escrever esse texto nas últimas horas de novembro. Porque ainda que artificial a divisão que fazemos da vida em dias, semanas, meses e anos… é a marca temporal que nos dá alguma aparência (ou ilusão) de controle.
E, na verdade, não temos nenhum.
O último mês do ano sempre foi difícil para mim. O pêndulo vai ao 8. Isto porque, entre a solidão e a solitude, eu nunca me senti confortável nas festividades. Ainda, nos últimos anos e as minhas mudanças alimentares, as festas ficaram ainda mais atrativas. Jamais fez sentido a reunião familiar de pessoas que eu sei muito pouco e que fingem — em sua maioria, que estão interessadas em mim.
Quando adolescente, as vezes eu me trancava e lia algum romance, na esperança de que algum dia alguma daquelas histórias fosse a minha realidade.
E, o que me deixa orgulhosa é saber que todas as festividades melancólicas valeram a pena, afinal, eu não teria retrospectiva alguma se eu não fosse capaz de colocar meus sonhos em prática.
Jennifer Ernesto, 2020
Álbum: https://open.spotify.com/album/0mwf6u9KVhZDCNVyIi6JuU?si=Wd3LphUPQHC7WYRJnBOUvw
Sentimento do Mundo
Carlos Drummond de Andrade
Tenho apenas duas mãos 
e o sentimento do mundo, 
mas estou cheio de escravos, 
minhas lembranças escorrem 
e o corpo transige 
na confluência do amor.
Quando me levantar, o céu
 estará morto e saqueado,
eu mesmo estarei morto,
morto meu desejo, morto
 o pântano sem acordes.
Os camaradas não disseram
 que havia uma guerra 
e era necessário
trazer fogo e alimento. 
Sinto-me disperso, 
anterior a fronteiras, 
humildemente vos peço
que me perdoeis.
Quando os corpos passarem, 
eu ficarei sozinho 
desfiando a recordação 
do sineiro, da viúva e do microscopista 
que habitavam a barraca 
e não foram encontrados 
ao amanhecer
esse amanhecer 
mais noite que a noite.
Navegar é Preciso
Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa:
“Navegar é preciso; viver não é preciso”.
Quero para mim o espirito desta frase, transformada
A forma para a casar com o que eu sou: Viver não
É necessario; o que é necessario é criar.
Nao conto gozar a minha vida; nem em goza-la penso.
Só quero torna-la grande, ainda que para isso
Tenha de ser o meu corpo e a minha alma a lenha desse fogo.
Só quero torna-la de toda a humanidade; ainda que para isso
Tenha de a perder como minha.
Cada vez mais assim penso. Cada vez mais ponho
Na essencia animica do meu sangue o propósito
Impessoal de engrandecer a pátria e contribuir
Para a evolução da humanidade.
É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa Raça.
BARBOSA, Francisco de Assis. LACOMBE, Américo Jacobina. SILVA, Eduardo. Rui Barbosa e a queima dos arquivos. Brasília, Ministério da Justiça: Rio de Janeiro, Fundação Casa de Rui Barbosa, 1988. ISBN 85–7004–107–1. http://www.rubi.casaruibarbosa.gov.br/bitstream/20.500.11997/9163/1/Rui%20Barbosa%20e%20a%20queima%20dos%20arquivos.pdf
ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O Perigo da história única.Companhia das Letras; 1ª edição (12 agosto 2019)
TED Talks. The danger of a single story. 2009. 18min34sec.
ERNESTO, Jennifer. Todo mundo escreve. 2020. https://issuu.com/jenniferaline/docs/todo_mundo_escreve__jennifer_ernesto
BUTLER, Octavia E. Filhos de Sangue e Outras histórias. Editora: Morro Branco; 1ª edição.
			



