“Eu chamo de Sinuca de Bico de Estupro. Ela assume a seguinte forma: se você fala, você é uma vítima indefesa procurando despertar compaixão. Se você não é uma vítima indefesa, então o que aconteceu não foi tão horrível assim, e, nesse caso, por que falar sobre isso? Se você vem sobrevivendo e levando sua vida, por que arruinar a vida de um pobre homem? Ou foi uma coisa séria, e então você está perdida, ou não foi nada tão sério assim e você deveria ficar quieta.”
O porquê da leitura em referência
Sohalia Abdulali me atraiu em uma das minhas caminhadas em livrarias em São Paulo, a capa vermelha alaranjada me chamou atenção, as letras garrafais pareciam de ser um livro divertido e amistoso. Eu levei um susto com o título e fiquei alguns meses olhando e filmando aquele livro que me instigava de longe.
Do que estamos falando quando falamos sobre ESTUPRO. Estupro com E maiúsculo, estupro… ESTUPRO.
Quando eu era pequena, eu perguntei para a minha mãe o que era ESTUPRO, ela perguntou com olhar de acusação se eu de fato queria saber, eu disse que não e excluí a palavra do meu vocabulário para a caixa do medo e coisas não ditas.
Ao me deparar com esse livro, meu corpo tremeu e eu me engasguei. Eu tinha 22 anos e conhecia muitas histórias de mulheres que sofreram agressões, que eram e são frutos de abusos psicológicos e ainda, eu inclusa com várias adversidades nessa sociedade misógina — a qual odeia as mulheres de todas as formas. A palavra temida foi reciclada e eu me dispus a lidar com ela.
ES.TU.PRO. ato de estuprar, de praticar à força a conjunção carnal ou outro ato libidinoso.
Ainda que Estupro seja anagrama de suporte, tudo o que as vítimas de estupro sentem é a ausência desse segundo conceito. Nós enquanto sociedade, construímos a ideologia do ódio as mulheres e, ainda que tenhamos muitas lutas para vencer, esse livro fez com que eu lembrasse da raiva necessária que eu carrego que é atrelada a condição de mulher.
Ademais, a autora indiana é tão justa e competente em sua reflexão e em sua escrita que ela denota as diferenças de localização geográfica, classe, raça, gênero, estrutura familiar e cultura envolvidas no evento do arrebatamento do Estupro. Ela explica que é importante sim que denunciemos o estupro e falemos sobre ele, mas em algumas situações, o Estupro pode significar racismo — quando ela traz de uma maneira muito difícil o viés da interseccionalização. Uma denúncia de Estupro supostamente realizado por um homem negro à uma mulher branca pode significar uma tentativa da classe branca de praticar mais um ato de genocídio à população negra.
“Ser um homem negro na América, acusado de estuprar uma mulher branca: isso nunca é apenas um caso de violência sexual. Na índia, ser dalit, ou membro de tribo, ou muçulmano, e ser acusado de estuprar uma mulher de alta casta: isso nunca é apenas um caso de violência sexual. Lembro, após ter sofrido o estupro, que fiquei tentando compreender como era possível, que, caso decidisse apresentar acusações, eu poderia sair dali e apontar para qualquer jovem pobre de favela, e com certeza ele iria ganhar, no mínimo, uma boa surra na delegacia de polícia.”
Por isso foi uma leitura intensa, necessária e a qual demorei meses para comprar o livro, um mês para lê-lo e, passados dois meses de digestão constante da leitura, eu me disponho a escrita dessa resenha.
Não tenho como ser justa e fiel as palavras de Sohaila em sua integralidade, mas, como uma mulher negra jovem brasileira, a qual vive num país que registrou em setembro de 2019, no 13ª Anuário Brasileiro de Segurança Pública, recorde da violência sexual, totalizando pelo menos 66 mil vítimas de estupro no Brasil em 2018 — maior índice desde que o estudo começou a ser realizado em 2007 — eu sou obrigada a denunciar a minha náusea e o meu repúdio.
Por fim, a maioria das vítimas (53,8%) foram meninas de até 13 anos. Conforme a estatística, apurada em microdados das secretarias de Segurança Pública de todos os estados e do Distrito Federal, quatro meninas até essa idade são estupradas por hora no país. Ocorrem em média 180 estupros por dia no Brasil, 4,1% acima do verificado em 2017 pelo anuário.
Eis uma pandemia secularmente ignorada.
Do que estamos falando?
Há mais de 30 anos, quando Sohaila tinha 17 anos e morava em Bombaim/Índia, ela fui estuprada por gangues e quase morta. Três anos após o evento traumático, a autora escreveu um ensaio em nome próprio descrevendo sua experiência numa revista para mulheres indianas, o que gerou uma agitação no movimento das mulheres — e em sua família — e depois desapareceu silenciosamente.
Em 2013, tal texto foi desenterrado e publicado online como instrumento de manifestação de raiva pública após o estupro e a morte de uma jovem mulher em Delhi.
“O texto que escrevi foi destilado de muitas das ideias que estão neste livro — a ideia de que o estupro não deve definir você, que não tem que ter reflexos na sua família, que é terrível, mas você pode sobreviver a ele, que você pode seguir em frente e ter uma vida feliz, e que quatro homens numa encosta de montanha não têm que ser donos de você para sempre. O The New York Times publicou o texto, e eu fui ao canal online deles para falar a respeito. Os editores me deixaram dizer a maior parte do que eu queria dizer, embora, para meu persistente pesar, eles tenham mudado ‘Eu rejeito a ideia de que o cérebro dos homens está nas bolas’ para ‘Eu rejeito a ideia de que o cérebro dos homens está nos genitais’ (‘bolas’, simplesmente, é muito mais evocativo).”
A autora deixa claro que não é agradável ser um símbolo de estupro:
“Não sou especialista nem represento todas as vítimas de estupro. Tudo o que posso oferecer é que, ao contrário da jovem que morreu em dezembro duas semanas depois de ter sido brutalmente violentada por uma gangue, e tantas outras, minha história não terminou, e posso continuar contando.”
Nesse sentido, Sohaila parte de sua própria experiência, bem como de seu trabalho atendendo centenas de vítimas nos Estados Unidos, bem como mais de trinta anos de trabalho dedicado a estrutura do patriarcado. Ainda, o livro é contemporâneo aos movimentos #Metoo, #TimesUp e #MeuPrimeiroAssedio, os quais permanece fresco na mente das diversas militantes ao redor do mundo.
Ao nomear o que vem a ser o Estupro e todo o sistema social o qual ele está construído e embasado, Sohaila proclama que vivemos em uma cultura onde o Estupro é a regra, os homens odeiam as mulheres.
Veja, essa é a leitura direta e o tom que eu desejo dar para esse texto. A construção social de masculinidade, feminilidade e violência está fundamentada nos moldes da violência sexual, no subjugamento e arrebatamento do outro.
A autora é sagaz ao elucidar que a regra é o estupro:
“Na Índia, o estupro em comunidades fechadas é, na realidade, uma das justificativas para o casamento de crianças. É melhor que a garota vá morar com os pais e parentes do noivo enquanto ainda é virgem, e que seja legalmente estuprada, do que um tio ou vizinho chegar primeiro.”
Ainda que a princípio ela esteja falando sobre o sistema que as mulheres indianas estão inseridas, não há exatamente cem por cento de segurança em ser uma mulher ao redor do mundo, a exemplo dos Estados Unidos, em que “mais de noventa por cento das pessoas com deficiência de desenvolvimento sofrem agressões sexuais.”
“No Kuwait, se você estupra uma mulher sem ser casado com ela, basta se casar com sua vítima e se livrar de problemas. Felizmente, os governos da Ásia Ocidental estão percebendo o quanto essas leis são desumanas. Casar para que o estupro fique renomeado como um ato de fazer amor se parece mais com sadismo patrocinado pelo Estado do que com justiça criminal. ”
A autora nasceu em uma família indiana atípica, onde ela teve o acolhimento que precisava quando passou pelo evento do Estupro.
“Quem sou eu para falar? (…) Acho que não devo ter esse gene da Vergonha com o qual outras mulheres indianas nascem, porque, apesar de toda a culpa, o horror, o trauma e a confusão que se seguiram ao meu estupro, nunca me passou pela cabeça que eu tivesse que me envergonhar de alguma coisa. Por sorte, isso tampouco passou pela cabeça dos meus pais.”
No entanto, ela entende que ter a oportunidade de ser ouvida é uma exceção. A regra é que as vítimas do Estupro também sejam vítimas do silêncio. Tanto que, na tentativa de desabafo com uma amiga, ela não teve quaisquer acolhimentos.
“Na Índia, quando tentei falar sobre estupro com Mati, minha eterna amiga tribal, ela riu muito da ideia de que seria possível existir algum tipo de justiça, seja lá onde fosse.”
“Ainda vai levar muito tempo até que o estupro se livre de seu estigma a ponto de você não ser mais punida por falar abertamente dele, como sobrevivente. Às vezes essa punição leva você a ser discriminada, a ser de algum modo diminuída.”
PROFISSIONAIS DO SEXO
“Ser uma profissional do sexo não significa que você merece ser estuprada. Ser uma esposa também não. De novo, sua capacidade de consentir depende de quem você é, e de onde você está. No Canadá, estuprar a esposa é crime (exceto se você estiver diante do juiz da suprema Corte, Robert Smith, que julgou que, se o home, não sabe que é ilegal obrigar a esposa a ter relação, então ele não é culpado.). Na Índia, em Gana, na Jordânia e em numerosos outros lugares, a partir do momento em que uma mulher é casada com um homem, ela transfere os direitos sobre a própria vagina (e o resto de seu corpo) ao marido. Não deu consentimento? Não tem problema. A lei diz que casamento significa acesso pleno, não é preciso nem perguntar nada.”
EDUCAÇÃO SEXUAL ABRANGENTE
“Na ausência de uma educação sexual abrangente, baseada no prazer, acabamos dependendo da mídia e de outras instituições culturais para modelar como o sexo deve ser. Independentemente de você tentar preencher essas lacunas voltando-se aos defensores da abstinência, à corrente principal da cultura popular ou à pornografia gratuita pela internet, o mais provável é que acabe com uma ideia incrivelmente estreita e falida de como funciona o sexo, uma ideia que coloca os homens como protagonistas sexuais, as mulheres como as (in)felizes receptoras do desejo dos homens, e a comunicação do consentimento como algo letal tanto para o tesão quanto para o romance […].”
“Educar para o consentimento faz outra coisa transformadora: diz às garotas que o sexo é para elas.”
CONSENTIMENTO
“Com muita frequência tendemos a falar das vítimas, acusando-as de terem aceito, de tirarem partido ou de terem ficado paralisadas após o estupro. Ou seja, se elas não deram um pulo, apunhalaram o homem e saíram correndo agarrando as roupas para cobrir as partes íntimas, então elas consentiram.”
“Dizer ‘mas ela consentiu!’ é apenas uma das milhares de formas que arrumamos para sair logo pondo a culpa na vítima. Certo, temos escolhas. Escolhemos entre ser humilhadas agora e ser humilhadas mais tarde, entre usar saia curta e usar saia cumprida, escolhemos ir embora ou fiar. Escolhemos dizer ‘sim’ por ser simplesmente mais fácil do que dizer ‘não’, pelo menos naquele momento. Nenhuma dessas escolhas equivale a consentir.”
“Sempre achei injusta essa expectativa de que a pessoa reporte o crime instantaneamente, ainda mais na minha situação, em que eu não fazia ideia do que acontecera, embora com certeza me sentisse horrivelmente mal e tivesse passado o dia seguinte dormindo e chorando.”
“Então, por que é tão difícil descobrir onde é que você deve e onde não deve pôr o seu pênis? Ou compreender que ninguém pede para ser estuprado?
“Predadores sexuais merecem o devido processo, não têm por que merecer uma imunidade abrangente das acusações, não mais do que qualquer outro tipo de criminoso.”
“Não acho que tenhamos que nos preocupar demais com a iminente avalanche de homens arruinados que irão despencar das alturas. Grande número deles consegue um salvo-conduto. E não precisamos procurar além do número 1.600 da Pennsylvania Avenue”
“É uma fórmula simples. Ofereça de maneira irrestrita controle, aceitação e apoio. É isso.”
“Embora a fórmula seja simples, nem sempre é fácil decidir o que fazer. Estamos sempre procurando razões para minimizar uma agressão sexual. e uma das razões mais evidentes é o bom e velho desconforto. Uma mulher me contou que um tio uma vez se meteu a apalpá-la, e que ela ainda convivera socialmente com ele até a morte dele, muitos anos mais tarde. Evitá-o significaria magoar sua tia, que ela amava. Era mais fácil cuidar para que sempre houvesse uma mesa entre o tio e ela do que criar um grande racha na família. Ela e os pais concordaram com isso. Mas é uma linha tênue — suponha que ela não tivesse sido capaz de suportar reuniões familiares. Para ela, não era um grande problema ver aquele velho meio repugnante. Para outra pessoa, talvez fosse.”
“Mitali reconhece que o acampamento não presta serviços a vítimas homens. Essa é uma verdade global triste — a ausência de serviços sobre agressão sexual específicos para homens e meninos. Por mais que sejam suficientes para as mulheres em toda parte, tais serviços são ainda mais precários para os homens.”
“E o que o estupro faz com os homens que o testemunharam e não puderam fazer nada? Ouvi muitas histórias que lembram da minha: enquanto estupradores agridem uma mulher, um homem assiste, incapaz de intervir. O cenário todo é uma mistura tóxica de machismo e crueldade, uma maneira muito clara de pressionar todos os botões relacionados ao que significa ser homem e ser mulher. Em qualquer cultura, estamos presos a expectativas prescritas de masculinidade e feminilidade, geralmente em detrimento de todos. É por isso que pessoas trans são tão ameaçadoras e tão necessárias.”
Guia Abdulali para salvar a vida de uma sobrevivente de estupro
Não achei suficiente a citação de algumas partes desse pequeno capítulo de duas páginas, dessa forma, seguem abaixo todas as orientações da Sohaila:
- Mostre-se horrorizada, mas não caia da cadeira, a ponto de obrigar a outra pessoa a cuidar de você.
- Acredite nela. Nada de perguntar “E se…”, ou discordar, ou duvidar. Simplesmente acredite nela.
- Deixe que ela tome a iniciativa. Se ela quiser falar, tudo bem. Se ela quiser ficar calada, tudo bem também. Se ela quiser chorar, a mesma coisa. Se ela fazer piada, tudo certo. Se ela quiser atirar coisa na parede, sem problemas.
- Pergunte o que ela quer. Você não precisa adivinhar.
- Incentive-a a procurar ajuda — médica, legal, física e mental. Mas, não force isso.
- Não fique querendo saber detalhes, mas deixe-a saber que você está disponível para ouvir, se ela quiser explicar melhor.
- Não questione os julgamentos que ela fizer.
- Deixe que ela formule o que está dizendo do jeito que quiser, com as palavras que escolher.
- Não tente entender ou analisar. Simplesmente esteja disponível.
- Lembre-se de que essa é a mesmo pessoa que você conheceu antes de saber que ela havia sido estuprada. Trate-a do mesmo jeito. Algo terrível aconteceu a ela, mas é a mesma pessoa. talvez ela também precise ser lembrada disso.
- E, por fim, mas não menos importante, não poderia dar um conselho melhor que o de Caitlin Moran: não seja babaca.
Esses conselhos dados pela autora são destinados à escuta da vítima no evento do Estupro, no entanto eu assino em baixo para muitas outras situações de vulnerabilidade as quais uma pessoa possa ser acometida. Que quem se dispõe a ouvir vítimas de racismo, classismo ou quaisquer outras violências, tenham a gentileza de seguir esse roteiro mínimo da escuta.
A (in)eficiência dos sistemas legais
“Mas no sistema legal dos Estados Unidos, se você mostra que tem envolvimento no assunto, que está bem informado e interessado pelo caso, então não tem condições de julgar. Se tiver sido estuprada, sua opinião sobre isso não será válida, porque então será muito tendenciosa, muito emocional, você estará próxima demais da questão.
Os dados atualizados que a autora elenca no livro são:

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Por fim, o sorriso da autora em suas fotos e toda a sua potência de escrita só me deixa o recado de que para algumas pessoas sobreviver não é uma escolha possível, sendo necessário lutar ao máximo para ser feliz diante das adversidades que o mundo pode oferecer.

Procurem saber de Sohaila Abdulali, e suas produções literárias e acadêmicas, ainda que seja uma leitura engasgada, eu tenho certeza que é uma leitura necessária para todos que vivem em sociedade e que principalmente pensam direitos humanos.
Inclusive, segue a indicação de o episódio What We Talk when We Talk About Rape do Podcast Jaipur Bytes, pode ser uma alternativa à leitura do livro.
Jennifer Ernesto, 2020




