Por uma recém formada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica
São Paulo, 29 de março de 2020.
Prezados estudantes de Direito do nosso país,
Venho até vocês para contar que, quando eu entrei na universidade, eu tinha dezessete anos e era bolsista integral pela PUC/SP. Ainda, no começo da minha graduação, eu me deslocava pelo menos trinta quilômetros para estudar. Na vida coletiva, o Brasil era governado pelo segundo mandato da ex-presidenta Dilma Rousseff e na capital de São Paulo, o professor Fernando Haddad era o prefeito. E, apesar dos muitos conflitos pessoais e coletivos, os climas eram progressistas.
Em sala de aula, a grade horária da PUC/SP impõe que estudemos dez matérias obrigatórias por semestre. O curso de Direito tem a duração de cinco anos, com dez disciplinas em cada semestre, além das atividades complementares, horas de estágio e trabalho de conclusão de curso — TCC. Espera-se que ao fim da graduação, o profissional de direito esteja preparado para integrar os quadros de advogados da OAB, bem como exercer a advocacia.
O meu perfil é mais voltado para ciência política, no entanto, o curso no qual eu me graduei é embasado em dogmatismo. O Estado Democrático de Direito brasileiro e suas atribuições. Assim, as aulas transformam a filosofia de Montesquieu[1] e sua divisão dos poderes em um consenso jurídico estabelecido na Constituição Federal como pré-requisito do Estado Federativo Brasileiro. A divisão dos três poderes em legislativo, executivo e judiciário, sendo, inclusive cláusula pétrea conforme disposto no artigo 60, §4º, inciso III da Constituição Federal de 1988[2].
Quando eu olho para o direito e minha conclusão desse curso, eu não me arrependo de ter estagiado em diversas áreas e setores (ONG, setor público e escritórios), bem como de ter realizado intervenções questionadoras em palestras e salas de aulas.
Ainda que a minha faculdade tenha um histórico de militância importante na sociedade brasileira, o qual o movimento estudantil — o qual eu nunca fiz parte formalmente -, há muitas contradições em sua estrutura. Como pode um curso de tão grande importância social ter uma mensalidade no valor de R$3.350,00 (três mil trezentos e cinquenta reais), sendo que o valor do salário mínimo atualizado na data da escrita dessa carta é de R$1.045,00[3] (mil e quarenta e cinco reais)???
O que eu quero informar para os estudantes de direito e quaisquer outras pessoas que se interessem por esse ramo é o porquê de escolhermos esse curso. Foi pela “facilidade” de empregabilidade e colocação profissional, apenas, ou se existe alguma chama pessoal dentro de vocês que provoca um desejo de mudança no cenário brasileiro e construção da justiça.
Adiante, aos que já se considerem amadurecidos pessoal e profissionalmente dentro do curso de Direito, o questionamento é o que vocês têm pensado sobre a estrutura do positivismo jurídico brasileiro, bem como, como o pensamento de Bobbio[4] nos provoca sobre a eficácia das normas e como elas afetam a nossa vida em sociedade.
O contraponto sociologia e filosofia jurídica versus doutrina, lei e jurisprudência é quase maniqueísta. O bem, o mal… impostos pelo ideal cristão. Aos estudantes do penúltimo e último ano, vocês têm conseguido equilibrar a finalidade do direito? Vocês conseguiram entender que ele deve ser entendido como meio e não como fim? Claro que nesse momento o mais importante para vocês deve estar sendo as efetivações em empresas e escritório bem como, passar no Exame de Ordem. Mas, eu tenho uma notícia infeliz, talvez alguma adversidade pessoal ou coletiva possa colocar essas prioridades de lado. Para mim, foi a morte de um ente querido. Para outros amigos foi um Burnout, uma depressão profunda que ceifou a vida num suicídio.
Mas, eu gostaria de chamar atenção para além do pessoal, hoje todos nós estamos acometidos por uma pandemia, a ameaça do COVID19 e estamos tendo que lidar pessoal e coletivamente com essa nova configuração de estado de calamidade pública, artigo 136, §1º, inciso II da Constituição Federal[5].
Quando eu falava “individual e coletivamente” em 2015, eu tinha muita raiva e com razão. A sociedade é intensamente desigual.
Porém, no início da minha carreira, eu tenho aprendido muito com as reflexões provocadas pelos meus antigos e atuais chefes, bem como professores. A comunicação é a alma das relações, e ainda que a presença e palavras possam ser mais enfáticas no aprendizado, o silêncio tem o poder de comunicar muita coisa.
Como vocês têm usado o silêncio provocado por uma pandemia para melhorar enquanto indivíduo? E, principalmente, enquanto participante de uma sociedade?
Ainda que as palavras aqui escritas tenham passado rapidamente por questões muito complexas, espero que elas tenham conseguido provocar uma reflexão sobre qual lugar ocupamos na barca, e para qual tipo de inferno ela está nos levando.
Jennifer Ernesto

* * *
[1] MONTESQUIEU. Do Espírito das Leis. Editora Martin Claret, São Paulo, 2010. https://www.amazon.com.br/Espirito-Das-Leis-Charles-Montesquieu/dp/8572326448/ref=sr_1_1?__mk_pt_BR=%C3%85M%C3%85%C5%BD%C3%95%C3%91&keywords=o+esp%C3%ADrito+das+leis&qid=1585517644&s=books&sr=1-1
[2] Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm
[3] MEDIDA PROVISÓRIA Nº 919, DE 30 DE JANEIRO DE 2020 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/Mpv/mpv919.htm
[4] BOBBIO, NORBERTO. Teoria da norma jurídica. Editora Edipro, 2014. https://www.amazon.com.br/Espirito-Das-Leis-Charles-Montesquieu/dp/8572326448/ref=sr_1_1?__mk_pt_BR=%C3%85M%C3%85%C5%BD%C3%95%C3%91&keywords=o+esp%C3%ADrito+das+leis&qid=1585517644&s=books&sr=1-1
[5] Constituição da República Federativa do Brasil De 1988. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm




